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4/11/2004

Páscoa, Futebol e a Marta

Ai tu estás tão grande!!! Ai tu estás tão crescido!!!! Tás mesmo bonito!!! Quando é que te casas?
E começam assim os preliminares de mais um almoço de Páscoa, o dia em que comemos que nem umas bestas pois andavamos esfomeados desde sexta-feira (é o que dar andar a peixinhos). Muita gente junta-se no Natal, outros é no ano novo. Aqui, diz a tradição, o almoço familiar é o de Páscoa. E lá vamos nós.
Os preparativos começam às 4 da manhã. Chego a casa a essa hora e lá está o meu guarda das masmorras a dizer “Olha que amanhã é o almoço, vai já dormir!”. Isto é claramente um erro estratégico pois estranhamente adormeço sempre quando me dizem que tenho de acordar.
O pior deste almoços não é o durante, é o antes. É como as romarias à final da Taça de Portugal. Vejamos: Primeiro, toca o telefone às 8 da manhã. Olá garoto, estavas a dormir? – perguntam do outro lado. Há várias respostas possíveis quando nos telefonam às 8 da manhã. Sim, estava a dormir é a interdita. Tenho então de percorrer variações à verdade. A) Não, claro que não, estava a vestir-me para a missa. B) Não, estava apenas a dormitar um pouco.C) Acha? Claro que não, já fui matar o cabrito para o almoço.
Esta última parece estranha, mas tem um fundo de verdade. Há uma tia minha, que acho que tem idade para ainda ter vivido sob o domínio do Filipe III, que acha que o que devemos comer somos nós que criamos ou caçamos. Ela vive num mundo à parte e a família já se habituou à situação. A resposta às suas questões é sempre SIM. Curiosamente, o seu marido, já falecido, esteve internado na ala psiquiatrica do Júlio de Matos. Só o vi uma vez. Na altura só sabia dizer “Zummmm (enquanto enfiava um dedo nos ouvidos)- Fui eu que matei Sidónio Pais..... Zummmmm.... Como fazer fatias paridas......zummmmm”.
A tia Madalena (nome de guerra) é uma querida. O engraçado é que tem sempre razão. Sempre que há uma má notícia na TV ela diz “Eu avisei mas ninguém ligou”.
Foi ela que me acordou às 8 da manhã e perguntou se eu estava a dormir. A resposta foi a C) e ela acreditou.
Depois desta chamada madrugadora todos nós pensamos assim. Vou dormir mais cinco minutos. E lá vamos para a cama. Mas não dá. Abriu a linha do quando o “telefone toca” e começam as organizações para o grande almoço em família.
Entretanto já a mãe veio ter comigo a dizer. Vais ter que ir buscar os tios a Braço de Prata. É curioso pois no dia anterior tinha perguntado se era preciso ir buscar alguém. Não, eles agora vêm de comboio sozinhos. Viu-se. 9:15 e lá teve de ir o guia buscar os tios. Depois acontece o inevitável. Mal chego dizem logo “Não era preciso cá teres vindo... A tua mãe é uma exagerada”. É sempre bom ouvir estes apoios, especialmente se tiveres umas olheiras do caraças e pareças bebado de tanto sono. Welcome to my family.
Passam então as horas da viagem e a concentração de gente na minha casa vai aumentando. Parece um misto de Sudoeste com a Praça da Alegria, mas já foi pior. Pelo corredor amontoam-se sacos e começa a parecer um campo de refugiados. É curioso a teoria dos sacos nos mais idosos. Todos trazem um com algo estranho lá dentro. Outros trazem sacos sem nada lá dentro. Mas há sempre sacos. É estranho.
Claro que no meio disto tudo há sempre primos. “Ena, tens computador. Que jogos tens?”. Esta é a pergunta da praxe. Denotam-se aqui as influências familiares na arte das questões. Os mais velhos perguntam sobre casamentos. Os mais novos sobre os jogos que tens. A questão, essa, tem de existir...seja qual for.
Mas se crêem que é chato ouvir a questão dos casamentos, então coitada da minha prima de 12 anos (que não estava no almoço). A frase mais ouvida durante a manhã foi “A Joana já tem maminhas e ontem foi mais a mãe comprar sutiens”. É por isso que respeito imenso as mulheres. Desde miúdas que também são dizimadas pelas perguntas.
Onze e cinquenta e cinco. Os meus tios Armando e Rolando quase se pegam à pancada. É sempre assim. A origem é sempre a mesma. Um é do Sporting o outro do Benfica. Desde as 10 da manhã que andavam a picar-se, aliás... desde o almoço de 1960 (diz-me a minha mãe). Há uma longa preparação de cada um para o debate pré-almoço de Páscoa. Por vezes acho que durante um ano eles vão acentando as coisas para exporem antes do almoço as suas opiniões. Naturalmente a discussão acaba sempre da mesma maneira. -“Vcs são uns merdas”, interrompidos por laivos da tia Madalena, com o seu disco de prata, “Eu avisei”. A minha família é um Hit Parade de frases feitas.
Meio dia e dez. Começa o almoço, que esta gente come cedissimo. Ainda de olhos bem cerrados lá vou falando. Curioso é que todos os anos há um novo lugar para mim. Qualquer almoço de família tem uma mesa para graúdos e mesa para os mais pequenos. Aqui não é diferente, mas como há três mesas, juntamos os idosos (ou a caminho disso), os mais jovens (na que estou) e a dos putos.
Os putos são uns ranhosos filhindos do papá (filhindos= filhos lindos da família). A mãe, antes de tudo começar, parte a carninha toda e só falta mastigar. Como é de esperar todos comem só com o garfo pois a outra mão tem de estar livre para jogar ao game boy.
É impressionante a mutação genética dos miúdos. Outrora estava convencido que quem ia para o IST (Instituto Superior Técnico), a partir do 3º ano, começava a desenvolver uns óculos, cada vez mais garrafais à medida que os anos passam. Hoje tenho a certeza que nos miúdos acontece o mesmo, só que em vez dos óculos crescem uns gameboys...e quanto mais velhos forem mais cor e som aquilo tem.
Escusado será dizer que houve choradeira- um dos putos entornou uma coca cola (deja vu constante) em cima da sua máquina.
Na mesa Dalton ao lado (a minha) estavam os “miúdos” dos 15 aos 30. Aqui é diferente, fala-se de futebol, computadores, corridas e claro...gajas/gajos. Eramos 4. Eu, os meus primos Rui e Pedro (ambos com 18 anos) e a minha prima Marta (25 anos). A Marta é Boa, muito Boa, e sempre foi. Há dois pontos que tenho que estar sempre a pensar nestes almoços. O primeiro é: “Ela é tua prima” (em 5ª grau...mas é). O segundo é: “não olhes para aí”.
O Rui e Pedro são gémeos. Gémeos, teenagers, tarados por PCs na mesa com a Marta. Enfim. É sempre o delírio. A Marta é linda, no verdadeiro sentido da palavra e tem amigas lindas e não quer namorado. Haja tomates para não lhe saltar para cima.
Passamos então para a mesa senhorial; a dos cotas. Ora aqui estão as “Avós” os “Avôs”, as “mães” e os “pais”. O tema de conversa é o benfica, o sporting e o boi preto nacional. Não se trata do árbito mas da Manuela Ferreira Leite. Esta é a mesa da vinhaça. Bebem, bebem e bebem. Ninguém vai –para já- conduzir portanto os danos são minimos.
É frequente ouvirmos risos histéricos provenientes desta mesa e todos comem de boca semi aberta.
Na minha é mais de queixo caido, mas de forma silenciosa. É a Marta.

Chega a hora do café. Os putos não querem, os jovens bebem, os cotas abusam. Começa outra discussão tradicional. Chega o momento do cigarro. Só eu e a Marta é que fumamos.
Começam as bocas. O Tio Rolando é o pior. “Deviam pôr uma barra de dinamite em todos os cigarros”. Ou “deviam era roçar mato e acartar pinhas em vez de fumar”. O tio Rolando tem expressões muito castiças. Todos anos quando me vê diz que estou mais crescido. A acompanhar esta frase vem outra “A mim nem me deixaram crescer (...) mal nasci meteram-me um fardo de mato às costas”. É constante ouvir isto em sucessivos almoços. Para perceberem um pouco melhor como é o meu tio Rolando basta dizer que ele ostenta um dos mais simbolos da portucalidade. “Angola 68, Amor de mãe” no braço esquerdo. O seu sonho era ter uma mota daquelas que o chuck norris tem- que deita misseis pelo escape. Ele aliás acha-se parecido ao Chuck Norris, na sua fase “Desaparecido em Combate”. Já o Armando é mais na linha Charles Bronson e carrega mesmo um modesto bigode que enrola nas pontas à Jorge Gonçalves.
É natural que eu utilize personagens do cinema para falar da minha família. Para além de mim quase todos adoram cinema. Por exemplo, a minha tia do tempo do Filipe III não sabe ler. Então gosta de filmes que não exijam leitura. O seu herói é o Bruce Lee porque dá “arraiais de porrada” a todos os que ela durante o filme tinha avisado que eram maus.
Isto é algo que sempre me fascinou e é real. Ela gosta mesmo do Bruce Lee e dos filmes de artes marciais dos anos 70/80 em especial. Tenho de a levar a ver o Kill Bill. Deve adorar. As más linguas dizem que ela adoece de propósito no Natal para poder ver o show televisivo em directo. A verdade é que nos últimos três anos já assistiu a dois Natais dos hospitais...Estranho sentimento groupie do festival.
Mas faltam ainda algumas personagens fulcrais. Há a minha tia Genoveva, uma dama. Não uma “dama, yo”, mas uma dama antiga. Finissima, de bom trato e aprazivel, a genoveva é uma antiga professora de música agora tocadora de música numa igreja. Religiosa, gosta muito de mim e dá-me sempre às escondidas de todos algum dinheiro para eu comprar qualquer coisa que goste. O estilo é um pouco diferente dos restantes e ela não me pergunta quando me vou casar, mas se “eu ainda namoro com aquela menina que conheci na faculdade”. Isto foi há 6 anos e já lhe disse 465 vezes que não namorava. O engraçado é que a reacção, quando digo que não, é sempre estupefacta e triste. “Era tão boa mocinha, mas tu ainda és novo”. A tia Genoveva nunca se casou. Diz a lenda que teve um grande amor que morreu em Moçambique na Guerra Colonial e que nunca mais voltou a amar. Nunca lhe perguntei se era verdade mas fico fascinado só com a hipótese de o ser.
Depois há a Tia Lourdes (porque será que os Tios nunca têm nomes banais?). Maria de Lourdes é a esposa do Tio do Armando. Trabalhou a vida inteira num cinema, nas bilheteiras, e muita da minha paixão por cinema se deve a ela. Todas as tardes (quando podia), saia da escola e lá ia ao Mundial ver um filme. É bom ter tias que nos deixam ver filmes à borla (antes da lusomundo ser dono daquilo).
Esta tia é a que chamo a paz de alma, e o meu tio apelida de “mosca morta”. Podem lhe estar a pisar um pé que ela nunca grita. Está na lei que é ela que no final vai fazer o café.
Depois há o casal Garcia, não o vinho mas uns verdadeiros andrades. São de Cinfães do Douro e vieram até cá almoçar. Esta situação põe em causa toda uma juventude, especialmente aquela que se desmarca dos compromissos pois tem de ir a qualquer lado, fazer não sei quê, precisamente na hora em que os convidamos para qualquer coisa. São eles os pais do Game e do Boy e do Pedro e Rui. Quatro filhos, de cinfães até Lisboa, numa carrinha certamente a ouvir qualquer êxito do Nel Monteiro. Haja cristandade.
Falta só a Marta. Ai a Marta. A Marta é neta do Rolando e filha da Prima Palmira já falecida. Ela agora vive com o avô Chuck Norris. Menina do ballet - agora nas danças- a Marta ainda teve tempo para se educar (desde os 15 sozinha) e tirar um curso de Belas Artes. Gosta muito de cinema e diz que quer vir morar para o meu quarto. Está há duas horas a ver os dvds que tenho e já mandou um camião Tir buscar uns que quer emprestados.
A catraiada está de volta da minha playstation, os tios dividiram-se entre a sorna e o Rambo II que tá a dar na TV . As mulheres estão a remodelar a cozinha. Só podem. Algo que me intriga imenso é que o lavar de pratos dura quase tanto tempo como o almoço.
Já ouço um ronco. Não sei de quem é mas certamente se o acordarmos vai dizer que não estava a dormir mas sim descansar a vista. É assim a Páscoa, esse dia que parece ter alguma relação com Cristo e a sua ressuscitação mas que na verdade é o que é; A Grande Invasão e o desapertar o botão das calças após "encher a mula" (mais um ponto chave do ser português).